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Autismo severo vs. Autismo leve: Reflexões em Uma Advogada Extraordinária

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E a série “Um Advogado Extraordinário” não decepcionou no terceiro episódio da primeira temporada. O que até onde eu sei nenhuma outra série ou filme fez até agora, foi representar uma pessoa com autismo leve, ou seja, nível um suporte, ao lado de uma pessoa com autismo severo, ou nível três suporte, como a gente costuma falar agora. A série explorou os contrastes de identidade entre eles, além de dar um tapa de luva de pelica, ou melhor, uma tijolada mesmo na romantização dessa condição. E eu vou explicar porquê, mas se você continuar aqui você precisa saber que tem spoiler, não tem outro jeito de explorar esse tema. Ok, então vamos lá.

E o episódio começa com uma cena forte. Um rapaz está deitado acordado enquanto um outro, bem grande, que se chama Kim, bate com muita força em seu peito. E nós descobrimos rapidamente que o indivíduo deitado está morto, e quem estava batendo nele era o seu irmão Kim, que é uma pessoa com autismo severo, que fala somente algumas palavras simples e apenas eventualmente. Ele é o que podemos chamar de não-verbal ou minimamente verbal (assista depois do vídeo que eu fiz sobre comunicação não-verbal para entender esses conceitos).

Kim é acusado então de homicídio, e a família do rapaz morto procura a firma de advocacia da nossa extraordinária Wii U para defender o rapaz. E os outros advogados recorrem logo a ela. Wii U também é diagnosticada com o Transtorno do Espectro Autista, mas aí entra uma das sacadas mais interessantes da série. Ela diz que nunca conheceu ninguém com autismo severo, e para quem conhece e circula na comunidade do autismo isso é muito forte. Existe uma frase que representa muito essa verdade, a de que se você conhece uma pessoa com autismo, você não conhece o autismo. Você conhece uma pessoa com autismo. E essas realidades são muito distintas entre si. Talvez até por isso que surjam tantas desavenças na comunidade do autismo, né? Porque as pessoas vivem experiências que são radicalmente distintas entre si. Famílias de pessoas com autismo leve ou moderado acreditam, muitas vezes, se arrogar na posição de quem tem como entender de dentro a experiência de uma pessoa com autismo não-verbal, e isso seria um total descalabro e uma arrogância sem fim. Mas não é isso que faz a nossa protagonista.

Ela reconhece a sua limitação, mas ela vai tentar, como qualquer pessoa, encontrar uma forma de se comunicar e defender da melhor forma o seu cliente. Ele é um cliente que gosta de música, e ela faz uma apresentação musical bastante extravagante para se comunicar com Kim. E interrompendo a apresentação para que ele complete a música, contando o que aconteceu, assim como eu tô interrompendo agora você para dar o like e se inscrever aqui no canal. Certo? Assim você assiste outros vídeos aqui, né? E se você não conhece um vídeo aqui no canal, você só precisa se inscrever para conhecer todos. Né, Gustavo? Jogadinha aí?

Agora, a série sobe o tom e nos apresenta essa música como uma esperança inequívoca de que aquele vai ser um momento de epifania. Sabe aquele momento mágico de resolução, em que ele vai conseguir se comunicar? Que a boa vontade e inteligência do interlocutor, nesse caso, é a outra advogada, é tudo que ele precisa. E a gente cai direitinho na armadilha da direção da série, quando a resposta não vem da maneira que a série e os filmes costumam trazer. É um baque. Nós somos postos no nosso lugar. Um pouco mais adiante, a pergunta é feita se o irmão tinha tentado se matar. E ele diz “sim”. Curioso, na próxima pergunta, se ele tinha tentado ver se o irmão estava vivo, ele também diz “sim”. Ou seja, é o contrário. Ele perguntou se ele não tinha tentado se matar, e ele disse “sim”. Ou seja, ele só estava repetindo o “sim” que ouviu.

Eu vejo muito esse engano com pessoas com autismo, um comportamento aleatório sendo interpretado assim como um comportamento completamente diferente. Eu recomendo muito a vocês assistirem o vídeo que eu fiz aqui sobre a maior fraude da história do autismo não-verbal, que tem muito a ver com isso. O que era não-verbal e o pensamento positivo não é capaz de resolver essa condição. Ele não comunicou nem na reunião com os advogados, e nem na audiência. E de fato, o seu irmão tinha tentado se suicidar, e ele tinha tentado salvar o irmão. E ele foi absolvido. Porque a situação foi compreendida por outros caminhos.

Ser sincero com Kim, na sua deficiência em estar presente nesse mundo de símbolos, ali na sua deficiência em usar palavras, confundiu a todos. E essa foi a maior sacada de “Um Advogado Extraordinário”. Essa série maravilhosa fugiu de todos os caminhos fáceis. Em toda a temporada, o meu amigo Doutor Paulo Liberalesso discutiu ainda outro dia no Instagram uma tendência histórica de se esconder o autismo severo e, assim como todas as demais condições mentais também, mais distantes do padrão social. Como que é essa ocultação? Ela é profundamente perniciosa para a comunidade e para toda a sociedade. Por isso, foi muito bacana a opção que ele fez. Eu vou deixar para vocês aqui um vídeo sobre séries e autismo, e outra playlist com as minhas resenhas sobre essa série “Um Advogado Extraordinário”. Divirtam-se aí no canal. Grande abraço!

Fonte: Autismo severo X Autismo leve em “Uma Advogada Extraordinária” por Luna ABA