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Descubra como os traumas surgem com Alexandre Simões

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É, mas aqui tem algo muito importante que permaneceu ao longo da obra freudiana: a ideia de que o trauma primeiramente é algo da ordem de um pacto, algo como um encontro. Quando Freud fala de trauma, ele está exatamente nos falando sobre isso.

Olá! Uma indagação que sempre é feita aos psicanalistas, que geralmente comporta grande interesse por parte das pessoas, é precisamente a indagação relacionada ao trauma: como os traumas surgem, por onde cruzam, como se constituem, como se instalam? E esse tema, o trauma, despertou a atenção de Freud desde os momentos iniciais da psicanálise, no momento em que ele está se deparando com as pacientes histéricas, constituindo o conceito de inconsciente e vários outros conceitos fundantes da psicanálise, estabelecendo os elementos que demarcam a prática analítica. E exatamente neste momento é que ele também começa a se interessar muito pelos traumas. A primeira ideia que Freud tinha acerca das neuroses, ou seja, acerca do nosso sofrimento, acerca dos sintomas que nos marcam, dos impasses que nos constituem, isso que viria a ser neurose, nesse sentido, não tanto no sentido psicopatológico do termo, que pode ter também um sentido, mas aqui no sentido estrutural, no sentido constitutivo, ou seja, a condição humana. O que Freud pensava inicialmente é que a nossa condição humana, especialmente a histeria, que é um modo de funcionamento muito específico, uma maneira de lidar com o amor, com o sofrimento, que tem as suas peculiaridades. Freud pensava que a histeria estava assentada sempre em trauma. Depois ele vai mudar um pouco a concepção de trauma que inicialmente ele constituiu. Nós podemos conversar sobre isso em um outro vídeo. Mas aqui tem algo muito importante que permaneceu ao longo da obra freudiana: a ideia de que o trauma primeiramente é algo da ordem de um pacto, algo da ordem de um encontro. Quando Freud fala de trauma, ele está exatamente nos falando sobre este encontro, este impacto, e ao mesmo tempo, alguma coisa que nos ultrapassa, alguma coisa que nós não podemos dominar inteiramente.

E uma segunda observação: o trauma, em Freud, não necessariamente ele adquire uma carga negativa, algo pejorativo, trauma assim, embaraçoso, impactante, da região do encontro. Mas o trauma é constitutivo. Freud sempre ressaltou que o trauma era uma experiência impactante, embaraçosa, que não está inteiramente em nossas mãos no sentido de dominá-la. Mas ela é uma experiência constitutiva. Isso sempre se manteve ao longo da obra de Freud, mesmo que, como eu disse, ele vá depois mudar um pouco e isso faz toda a diferença, um pouco sobre a sua ideia de trauma neurose. Mas quando ele fala de trauma, ele está falando de algo constitutivo, impactante, um encontro que é muito significativo.

E um outro ponto importante para falarmos sobre os traumas: quando Freud fala sobre trauma, nesse momento, ele sempre o pensou como o acontecimento que se dá em dois tempos. O primeiro tempo que é exatamente isso que eu estou mencionando, em que algo da ordem do excesso, do extravasamento do impacto se dá e marca fundamentalmente. Esse tempo, ele não comporta sentido, significação. Essa é a grande marca do trauma e isso é o que é profundamente marcante: o trauma, no primeiro momento, se apresenta como uma experiência que não comporta sentido. Então, para a gente entender isso melhor, nós temos que compreender que as marcas podem se dar em nós sem que consigamos inicialmente atribuir sentido a essas marcas. Então, algo que ultrapassa o sentido, a significação, o entendimento, uma espécie de elemento anódino, sem sentido.

E o segundo tempo: depois dessa primeira marca sem sentido, temos um espaço, o intervalo que podemos chamar de latência. E depois é que nós temos um novo encontro com a vida, que é da ordem de uma contingência, pode ser um encontro qualquer, um encontro que talvez não tenha tanto impacto, tanta significação. Mas esse segundo encontro reativa, retoma, nos remete ao primeiro. E é aí sim que nós temos esse encontro segundo, que se mostra como trauma efetivamente. Na verdade, o segundo encontro é uma espécie de reencontro com algo que nos marcou anteriormente e que nós não temos inteiramente como atribuir um sentido a isso que nos feriu, o que somos, e esta-estou sendo muito sintético, é uma mecânica muito importante do trauma. E pros pensar o trauma como um acontecimento que se dá em um movimento duplo. Primeiro tempo, sem sentido, então algo que pode ser da hora de um encontro. E Lacan vai nos propor que esse encontro traumático é fundamentalmente um encontro com a linguagem, com aquele que nos nomeia, com aquele que fala sobre nós. O encontro com a linguagem é da hora de um ponto traumático, são marcas que estão ali colocadas e que não fazem sentido naquele tempo, mas só depois recebem algum sentido. Bom, então nós não temos uma concepção bem curiosa e bem distinta do que normalmente se pode pensar no sentido comum como trauma. Essa concepção freudiana, como se o trauma fosse um acontecimento muito significativo e que nos marca e que sempre retorna às nossas memórias. O trauma é significativo porque ele não tem sentido inicialmente, há um intervalo e depois uma experiência. Pode sim nos remeter a algo de traumático em nossas vidas.

E eu vou aqui fazer a ponte com uma situação atual: o filme “A Voz Suprema do Blues”, que inclusive concorreu ao Oscar de 2021. No filme, em torno dos 39 minutos, quem tiver oportunidade, assista à narrativa do ator principal, do protagonista. Ele fala de um encontro com algo marcante e impactante, mas que ele não entendia muito bem o que estava acontecendo. E esse não entender é a marca do sem sentido. É muito interessante isso com que ele se depara. Eu não vou dar spoiler do filme, mas isso que ele não compreende no momento em que ele ainda era muito jovem, criança, isso o marca profundamente e gera consequências em sua vida. Então, o trauma é algo significativo, algo importante e que nós devemos, a partir da psicanálise, localizar como sendo uma marca que se dá, um encontro que se dá e que não se restringe ao sentido. Pelo contrário, subverte o sentido.

Então nós temos que começar a pensar, se queremos localizar bem esse paradigma do trauma para a psicanálise, nós temos que começar a pensar em marcas desatreladas do sentido. E é por aí que nós vamos pensar no trauma como algo que surge como tendo algum sentido. Na verdade, é uma segunda experiência que nos remete a algo da primeira experiência. Pois bem, como lidar com os traumas ao longo de uma prática analítica? O fundamental é sempre buscar um novo dizer, fazer dizer, buscar a palavra, as palavras, a narrativa, que possa produzir algum sentido. Ali onde inicialmente há uma carência de sentido. Esse é o grande empenho da prática analítica: produzir sentido, ainda que nós estejamos fadados a sempre lidar com a não completude do sentido, produzir novos sentidos, narrativas, fazer com que haja uma fala ali, onde, do contrário, só haveria o silêncio. O silêncio do sentido, o trauma, a princípio, é algo silencioso. A prática analítica nos provoca a um dizer, para que possamos lidar com esse silêncio que nos marca, nos habita e faz com que sejamos.

E isso aí, até o nosso próximo encontro!

Fonte: COMO SURGEM OS TRAUMAS | Alexandre Simões por Instituto ESPE